O Abecedário de Deleuze

 

O Abecedário de Gilles Deleuze foi um programa de oito horas produzido em 1988-89, mas só apresentado em 1996 em função de uma cláusula de divulgação pós-morte. O conteúdo consiste na escolha de uma palavra-chave para cada letra do alfabeto, para o qual o filósofa fará um pequeno comentário de acordo com sua filosofia e experiência de vida. Os temas são:

A de Animal
B de Beber
C de Cultura
D de Desejo
E de Enfance [Infância]
F de Fidelidade
G de Gauche [Esquerda]
H de História da Filosofia
I de Idéia
J de Joie [Alegria]
K de Kant
L de Literatura
M de Maladie [Doença]
N de Neurologia
O de Ópera
P de Professor
Q de Questão
R de Resistência
S de Style [Estilo]
T de Tênis
U de Uno
V de Viagem
W de Wittgenstein
X de Desconhecido
Y de Indizível
Z de Ziguezagu

O programa é cheio de preciosidades, atestando uma geração de filósofos cuja presença na mídia fazia com que a disciplina filosófica começasse a ser divulgada como algo que todo homem deveria ter acesso por ser-lhe tão instintivo e necessário como qualquer outra ferramenta (o próprio Foucault foi figura importante neste contexto, com sua forte presença nos meios de comunicação), postura esta reflexo da posição política de esquerda destes intelectuais.

Deleuze introduz o espectador à própria função da filosofia (criar conceitos e descobrir os problemas aos quais eles se aplicam) de forma ao mesmo tempo didática e poética. Seu talento para lecionar é inegável, tornando a entrevista uma verdadeira aula de filosofia e de vida na qual conceitos complexos como a Ideia platônica ou a mônada leibniziana são explicados da forma clara, acessível e, mais do que tudo, apaixonada.

Além disto, a entrevista explora a história intelectual do filósofo: seus amigos (como Félix Guattari e e o próprio Foucault), suas leituras, suas visões do que significa escrever e ser lido. Deleuze (1925-1995) foi um dos mais influentes intelectuais no movimento de maio de 1968, ano em que publica Diferença e Repetição. Nos anos de 1972 publica O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia, obra de impacto na psicologia por sua contestação da definição freudiana de desejo.

A relação que Deleuze tinha com a produção cultural desde o cinema até a literatura é igualmente fascinante e talvez uma das maiores lições que o filósofo poderia ter nos deixado. Ela fala de abertura ao invés de certezas, de uma relação viva que requer uma atitude ativa de nós, público. E perigosa, pois nunca há garantia de se achar algo que nos diga respeito, caracterizando a experiência cultural como uma

"Não acredito na cultura; acredito, de certo modo, em encontros. E não se têm encontros com pessoas. As pessoas acham que é com pessoas que se têm encontros. É terrível, isso faz parte da cultura, intelectuais que se encontram, essa sujeira de colóquios, essa infâmia, mas não se tem encontros com pessoas, e sim com coisas, com obras: encontro um quadro, encontro uma ária de música, uma música, assim entendo o que quer dizer um encontro. Quando as pessoas querem juntar a isso um encontro com elas próprias, com pessoas, não dá certo. Isso não é um encontro. Daí os encontros serem decepcionantes, é uma catástrofe os encontros com pessoas. Como você diz, quando vou, sábado e domingo, ao cinema, etc., não estou certo de ter um encontro, mas parto à espreita. Será que há matéria para encontro, um quadro, um filme, então é formidável."

E nada é mais satisfatório do que a imagem viva de um filósofo, algo raro numa disciplina tão antiga. Ver seus maneirismos, ouvir sua voz entre a excitação e a hesitação, ver sua humanidade em seus limites e, ao mesmo tempo, em toda sua capacidade. E sua excentricidade, a qual o próprio Deleuze tanto admirava como traço de personalidade, é em si uma alegria de testemunhar: O Abecedário de Deleuze promove o tipo de encontro que o filósofo advoga.

Os vídeos legendados podem ser acessados aqui e a transcrição aqui.

Pela necessidade de ser indomesticável: O Fantástico Sr. Raposo e Amantes Eternos.

Porque sou um animal selvagem” é o mote do senhor Raposo, personagem principal de O Fantástico Sr. Raposo (The Fantastic Mr. Fox, dir. Wes Anderson, 2009), adaptação do livro infantil homônimo de Roald Dahl. O patriarca Raposo vive um dilema pois não aceita deixar-se domesticar e, na ânsia de reviver seu passado glorioso como ladrão de galinhas, planeja uma aventura com seus amigos que acaba por envolver não só sua família como toda a comunidade animal, gerando uma espécie de guerra civil com os três grandes fazendeiros locais. O tema dos outsiders é caro à obra de Dahl, pois basta rever alguns de seus títulos (A Fantástica Fábrica de Chocolate, Matilda e James e o Pêssego Gigante, para citar algumas que tiveram adaptações bem-sucedidas para o cinema). Nestas obras há personagens em busca não só de uma forma de expressar seus "eus criativos" no mundo como também a tentativa de se conectar com os outros, uma vez que a expressão da individualidade gera uma espécie de rejeição por parte do mundo exterior.


  O que poderia ser chamado redutoramente de uma crise da meia idade ganha contornos mais profundos em O Fantástico Senhor Raposo. Isso acontece porque o questionamento do personagem principal toca numa questão intrigante, perguntando pela essência dos seres e de sua relação não só com o mundo natural exterior como com sua própria natureza interior. Podem seres selvagens aceitar ser outra coisa senão selvagens? Até que ponto é possível – e desejável – mudar nossas naturezas? E qual é o preço desta adaptação? A tensão entre adaptação e mutilação é tópico central no filme e aponta para a complexidade de um mundo onde não podemos ser tudo que desejamos, mas onde necessitamos igualmente respeitar nossas vocações e temperamentos para efeito de manutenção de nossa sanidade mental.
                A crítica social é também enfática. Não só no que diz respeito a embates como comunidade versus privado ou natureza versus homem. O caráter antropomórfico das famílias animais e sua relação direta com a família nuclear humana de classe média traz ainda mais inquietação acerca da artificialidade da vida contemporânea, onde segurança e conforto são colocados como valores máximos. Como já sabemos, este tipo de ideologia, cujas bases são o medo e o controle, tem regrado a vida individual e social das pessoas por leis de mercado. Um bom exemplo disso é o parque tipo exportação de origem mexicana Kidzania e sua proposta que "oferece às crianças e seus pais um ambiente seguro, único, realista e educacional (...)". O tema é analisado no artigo Kidzania: cidade nada ideal para crianças, cuja divulgação nas redes sociais ganhou o sugestivo título "Kidzania: onde se domesticam as crianças":
 "No Kidzania as crianças brincam de piloto, jornalista ou engenheiro em trocas sociais e afetivas mediadas pelo consumo e troca monetária. A ideia de ingresso no parque é “pegue seu dinheiro, faça mais dinheiro e gaste como desejar”."

Numa tríade que conjuga cidadania, papéis sociais e consumo o resultado só pode ser de domesticação às regras vigentes, regras de mercado que visam  (e também adultos). Ao invés de abrir possibilidades, restringe o mundo a um faz de conta onde todas as alternativas são controláveis (e controladas pelas grandes marcas). É impressionante contrapor tal perspectiva com a fala do senhor Raposo:
 "Quando olho para esta mesa, com o excelente banquete colocado diante de nós, vejo: dois incríveis advogados, um hábil pediatra, um maravilhoso chef, um experiente agente imobiliário, um excelente alfaiate, um dotado músico, um ótimo pescador e possivelmente a melhor pintora de paisagens em atividade hoje. (...) Também vejo um cômodo cheio de animais selvagens. Animais selvagens com naturezas puras e talentos puros. Animais selvagens com nomes científicos latinos específicos que significam algo sobre nosso DNA. Animais selvagens cada um com suas respectivas qualidades e defeitos devido à sua espécie."
 A lógica do senhor Raposo é completamente oposta a do parque temático e para ele mais do que adaptação, a resistência é a chave. E num contexto onde as forças de domesticação e acomodação são enormes, apegar-se ao que é mais autêntico em nós mesmos parece a única saída, a única arma de oposição e mudança. Fazer coabitar nossa existência social sem esquecermos de ser fiel à nossa vida interior mais elementar, vida esta que nos supre de alegria e que norteia a razão de nossa existência, é a grande lição do senhor Raposo.
Numa outra matriz temos Amantes Eternos (Only Lovers Left Alive, dir. Jim Jarmusch, 2013), onde o casal de vampiros Adam e Eve protagoniza uma história com ares um tanto apocalípticos ao viverem num mundo onde o sangue dos humanos, assim como o resto, está contaminado. Devido a isto, os vampiros não se alimentam mais diretamente de humanos, recorrendo à alternativas mais "sépticas" para suas necessidades nutricionais. Enfim, para manterem-se vivos, os vampiros se deixaram domesticar e o custo parece ter sido caro, uma vez que Adam se torna cada vez mais recluso e suicida. Adam vive uma crise como o senhor Raposo, e se não da meia idade, a de uma eternidade que parece finalmente se esgotar, onde “toda a areia da ampulheta parece estar no fundo ou algo do tipo”. Se o dilema de vampiros que não podem ceder aos seus impulsos predadores já foi celebremente explorado no cinema na figura de Louis em Entrevista com o Vampiro, o tormento romântico é solucionado em Amantes Eternos a partir de uma resposta mais positiva no sentido de aceitação da natureza dos seres.  A chegada da jovem irmã de Eve e seus instintos indomáveis que a levam a se alimentar de um amigo humano de Adam causam a reviravolta na história e joga o casal numa série de circunstâncias que os leva ao retorno primitivo da caça.




Os dois filmes denunciam uma nova escala de controle das almas. A tentativa de domesticação pelo medo (seja medo de uma vida que não se cumpra como o planejado ou de um mundo que se despedaça) parece ser o pilar que cada vez sustenta a nossa sociedade. O prazer do processo das experiências é substituído pelo afã dos resultados, o futuro sufocando o presente e até mesmo o passado. Se, por um lado, vivemos uma abertura para a pluralidade da existência e das formas de pensamento, por outro há uma intangível restrição da individualidade e uma ideologia crescente que entende a vida das crianças e adultos como um narrativa linear onde a sequência das coisas já se dá arranjada a princípio. E qualquer ruptura nessa ordem é entendida como uma verdadeira ameaça de morte, como a temível catástrofe da falha. Tal controle acontece em diversas escalas institucionais mas que parecem ter suas amarras mais fortes na família. Não é à toa que a reação inicial da esposa do senhor Raposo à necessidade de ser selvagem é a de assegurar a domesticação do parceiro, negando sua natureza.
"Senhora Raposo: Esta história é muito previsível
Senhor Raposo: Previsível? Sério? Então como ela acaba?
Senhora Raposo: No fim todos morremos. A não ser que você mude."
Apenas posteriormente a senhora Raposo seguirá a revolução contra a domesticação iniciada por sua família, o que parece também ser o caso de Eternos Amantes, no qual Eve apresenta maiores traços iniciais de instinto de sobrevivência. No entanto, no caso de Adam e Eve, seu relacionamento é condizente com sua vida boêmia e a liberdade que lhes é tirada no mundo é devolvida no casamento, seguindo uma lógica mais livre de um amor que não precisa de amarras. Nem a mesma casa eles compartilham, pois Eve vive em Tânger e Adam em Detroit. Quando o amigo de Eve questiona "Francamente, não entendo porque vocês não vivem no mesmo lugar.  Porque vocês não podem viver um sem o outro", fica claro que eles não precisam existir no mesmo espaço e viver de acordo com o que é esperado socialmente de um casal para demonstrar seu amor. E em ambas as histórias o retorno ao selvagem acontece a partir do núcleo familiar, o que é bastante sugestivo e aparece sob a forma de um impulso dos personagens rumo à aventuras que demandam coragem e que despertam um sentimento adormecido de estar vivo, de "sobreviver às coisas", como diz Eve. No artigo Jim Jarmusch: 'Women are my leaders' a questão é exemplarmente resumida:
"O que Adam aprende, o que Jarmusch entende, é que não é vantagem em se retirar do círculo.  A sobrevivência é um instinto e para alguns é a única opção. Os artistas precisam roubar e vampiros precisam se alimentar. O que Adam percebe como entropia, Eve reconhece como fome."
 Desta forma, em Amantes Eternos, viver nas sombras é mais do que a clássica intolerância destas criaturas à luz solar, é ocultar a essência, é render-se à mediocridade de um mundo que, por falta de um impulso original e sincero que o revigore, consome a si mesmo. É nesse sentido que Adam declara acerca dos humanos (a quem chama “zumbis”): “Estou cansado disto - desses zumbis, do que eles fizeram com o mundo, seu medo de suas próprias imaginações.”. Em seu tédio de fin-de-siècle, Adam ataca o ponto da questão, uma vez que os humanos "zumbis" (é bom lembrar zumbis agem mecanicamente por serem vazios de alma, por já estarem mortos) são nada mais do que a sociedade que se reproduz de forma egoísticamente predatória, padronizadora e preconceituosa, alheia a valores como sensibilidade e criatividade. 
Os vampiros assumem então o arquétipo dos desajustados sociais, dos boêmios, dos intelectuais. Personagens como Adam e Eve são localizados por toda a história da humanidade, como se criatividade e originalidade de fato pertencessem a uma zona marginal. Mesmo artistas e escritores renomados que viveram em meio ao centro do poder tiveram esta característica de uma vida interior rica que os afastava dos demais, como se as amarras sociais fossem diretamente opostas ao coeficiente criativo.
 É claro que o tema da genialidade já foi amplamente debatido e hoje é bastante questionado, mas o que se coloca aqui não é a celebração dos indivíduos ditos geniais como exceção e sim a possibilidade de que todos exerçam sua genialidade, esta entendida como a livre expressão de talentos, sonhos e visões. Amantes Eternos é costurado por narrativas de contato com artistas, escritores e inventores de vários períodos, indivíduos que, como o senhor Raposo, viviam suas vidas sem estarem alheios ao que significa estar neste mundo, que pensaram o que significa este mundo afinal de contas. A grande maioria pertenceu à geração romântica marcada justamente pela celebração dos instintos primários sensoriais e pela afã com que decorava a vida (e encorajava o público a fazê-lo).  E foram em grande parte, cada um a seu modo, selvagens, indomesticáveis, incontroláveis, imprevisíveis... e fascinantes. Por isso, que fique a inspiração que estes deixaram e fiquemos com com o ensinamento da senhora Raposo:
 "Somos todos diferentes. (...) Mas há algo meio que fantástico nisto, não há?"
Parede com os "célebres conhecidos" de Adam e Eve em Eternos Amantes. Fonte: http://smirkingsmut.tumblr.com