Compare as quatro versões de 'O Diário de Anne Frank'


Como antecipa a coluna Painel das Letras deste sábado (9), o brasileiro Daniel Dago, um dos principais tradutores do holandês em atividade no país, resolveu verter para o português "O Diário de Anne Frank".

O livro é alvo de uma polêmica internacional. Há quem defenda que a obra entrou em domínio público em 2016, quando a autora fez 70 anos de morte. A Anne Frank Fonds, fundação que detém os direitos do livro, diz que não —Otto Frank, pai da autora, teria direitos autorais sobre a obra. Como seria organizador do diário, o livro só entraria em domínio público depois dos 70 anos de morte dele.

Para entender a polêmica, é preciso saber que existem quatro versões do diário. O texto bruto escrito por Anne (versão A); um segundo, editado pela garota para publicação (B); a versão de Otto Frank (C); e a da escritora alemã Mirjam Pressler (D), organizada em 1995.

A Folha pediu que Daniel Dago traduzisse dois trechos nas quatro versões, para que fosse possível compará-los. A ideia é jogar luz sobre a polêmica: Otto Frank foi "organizador" do diário, como diz a Anne Frank Fonds, ou seu mero editor?

Confira as traduções abaixo:

PRIMEIRO TRECHO

Versão A
Segunda-feira, 14 de fevereiro de 1944

Cara Kitty,

Domingo à noite todos nós, exceto Pim e eu, ficaram ouvindo no rádio "'Unsterbliche Musik Deutscher Meister". Pfeffer girou persistentemente o botão, Peter se aborreceu e os outros também. Depois de conter o nervosismo por meia hora, Peter pediu, um pouco irritado, que parasse de girá-lo. Pfeffer respondeu com ar vanglorioso: "Ich mach' das schon!". Peter ficou bravo, atrevido, o senhor Van Pels ficou de seu lado, e Pfeffer teve que ceder. Foi isso.

O motivo da briga não era, ensi [sic], tão extraordinariamente importante, mas estava claro que Peter levou o assunto bem a sério, de qualquer maneira, quando eu fui vasculhar, de manhã, a prateleira de livros do sótão, ele começou a me falar sobre a questão. Eu não sabia de nada, Peter notou que tinha encontrado uma ouvinte atenta e começou a se animar.

"É, sabe", ele disse, "eu não falo muito, pois já sei de antemão como as minhas palavras vão soar. Vou gaguejar, ficar vermelho, e mudar as palavras que queria dizer. Ontem mesmo quis falar coisas bem diferentes, mas, quando comecei, acabei embaralhando tudo. Isso é terrível; eu tinha um hábito horrível, às vezes, antigamente, quando ficava bravo com alguém, preferia sair na porrada do que ir discutir. Mas sei que isso não leva a nada e por isso te admiro tanto, pelo menos você solta palavras, diz o que quer dizer, e não é tão tímida."

"Olha só,", respondi", geralmente, eu também falo coisas bem diferentes do que queria dizer. Falo muito e isso também não é bom!"

Peter continuou falando e sempre acabava voltando a mencionar o Pfeffer. Não vou escrever o que ele disse, pois você vai fazer birra do Pfeffer comigo, mas tudo bem. Só que vou repetir uma coisa que ele disse:

"Ontem à noite eu estava tão nervoso que tremi inteiro, como nunca tinha feito; nem me reconheço mais! Não me acontece sempre, sou diferente, quase nunca fico nervoso."

Eu realmente senti pena dele. Ele ficou ali, claramente desinteressado, apoiado no saco de batatas, enquanto eu quase fiquei na frente de seus pés. E, pelas palavras, pelos gestos, pela voz, pelos olhos, pude notar que havia dentro dele uma raiva maior do que quando ficava comigo. Ele é a pessoas da mesma idade com a qual me relaciono e mesmo assim tudo é incerto.

Versão B
Segunda-feira, 14 de fevereiro de 1944

Cara Kitty,

Domingo à noite todos nós, exceto Pim e eu, ficaram ouvindo no rádio "'Unsterbliche Musik Deutscher Meister". Dussel girou persistentemente o botão. Peter se aborreceu e os outros também. Depois de conter o nervosismo por meia hora, Peter pediu, um pouco irritado, que parasse de girá-lo. Dussel respondeu em seu tom vanglorioso: "Ich mach' das schon!". Peter ficou bravo, atrevido, o senhor Van Daan ficou de seu lado e Dussel teve que ceder. Foi isso.

O motivo da briga não era, em si, tão extraordinariamente importante, mas estava claro que Peter levou o assunto bem a sério. De qualquer maneira, quando eu fui vasculhar, de manhã, a prateleira de livros do sótão, ele começou a me falar sobre a questão. Eu não sabia de nada, Peter notou que tinha encontrado uma ouvinte atenta e começou a se animar.

"É, sabe", ele disse, "eu não falo muito, pois já sei de antemão como as minhas palavras vão soar. Vou gaguejar, ficar vermelho e mudar as palavras que queria dizer, aí vou ter que cortas as minhas afirmações, pois já não encontro mais as palavras. Ontem quase acabei querendo falar coisas bem diferentes, mas quando comecei, acabei embaralhando tudo, e isso é terrível.

Antigamente, eu tinha um hábito horrível, que ainda gostaria de ter: quando ficava bravo com alguém, preferia sair na porrada do que discutir. Mas sei que esse método não leva a nada e por isso te admiro tanto, pelo menos você solta palavras certas, diz o que quer dizer, e, ao menos, não é muito tímida.

"Então você está errado,", respondi, "na maioria dos casos eu também falo coisas bem diferentes do que tinha pensado primeiro e falo demais, por muito tempo, isso é bem ruim."

"Pode ser, mas você tem a vantagem de que nunca percebem que você está tímida. Continua com a mesma cor e disposição."

Para não rir dessa última frase, tive que ficar em silêncio, queria que ele continuasse falando tranquilo sobre si mesmo, não deixei que notasse nada da minha alegria, fui sentar numa almofada no chão, coloquei os braços em volta das pernas duras e o olhei perceptivamente.

Fiquei bastante contente que ainda houvesse alguém em casa que fizesse as mesmas birras que eu. Peter pareceu bem por poder criticar Pfeffer usando os piores termos e sem ter medo de ser dedurado. E eu, eu também gostei, pois tive um forte sentimento de confraternidade, que só tinha tido com minhas amigas

Sua Anne.

Versão C
Segunda-feira, 14 de fevereiro de 1944

Cara Kitty,

Domingo à noite todos nós, exceto Pim e eu, ficaram ouvindo no rádio "'Unsterbliche Musik Deutscher Meister". Dussel girou persistentemente o botão. Peter se aborreceu e os outros também. Depois de conter o nervosismo por meia hora, Peter pediu, um pouco irritado, que parasse de girá-lo. Dussel respondeu num tom vanglorioso: "Ich mach' das schon!". Peter ficou bravo, atrevido, o senhor Van Daan ficou de seu lado e Dussel teve que ceder. Foi isso.

O motivo da briga não era, em si, tão extraordinariamente importante, mas estava claro que Peter levou o assunto bem a sério. De qualquer maneira, quando eu fui vasculhar, de manhã, a prateleira de livros do sótão, ele começou a me falar sobre a questão. Eu não sabia de nada daquilo, Peter notou que tinha encontrado uma ouvinte atenta e começou a se animar.

"É, sabe", ele disse, "eu não falo muito, pois já sei de antemão como as minhas palavras vão soar. Vou gaguejar, ficar vermelho e mudar as palavras que queria dizer, até ter que cortas as minhas afirmações, pois já não encontro mais as palavras. Ontem quase acabei querendo falar coisas bem diferentes, mas quando comecei, acabei embaralhando tudo, e isso é terrível. Antigamente, eu tinha um hábito horrível, que ainda gostaria de ter. Quando ficava bravo com alguém, preferia sair na porrada do que discutir. Mas sei que esse método não leva a nada e por isso te admiro, pelo menos você solta palavras certas, diz o que quer dizer, e, ao menos, não é muito tímida."

"Então você está errado,", respondi, "na maioria dos casos eu também falo coisas bem diferentes do que tinha pensado primeiro e falo demais, por muito tempo, isso é bem ruim."

Para não rir dessa última frase, tive que ficar em silêncio, queria que ele continuasse falando tranquilo sobre si mesmo, não deixei que notasse nada da minha alegria, fui sentar numa almofada no chão, coloquei os braços em volta das pernas duras e o olhei perceptivamente.

Fiquei bastante contente que ainda houvesse alguém em casa que fizesse as mesmas birras que eu. Peter pareceu bem por poder criticar Dussel usando os piores termos e sem ter medo de ser dedurado. E eu, eu também gostei, pois tive um forte sentimento de confraternidade, que só tinha tido com minhas amigas.

Sua Anne.

SEGUNDO TRECHO (não existe versão B)

Versão A
Segunda-feira, 14 de fevereiro de 1944

Cara Kitty,

Muita coisa mudou para mim desde sábado. Por causa disso: eu ansiava (e ainda anseio) mas... já tive ajuda numa pequena, pequenina, parte.

Domingo de manhã notei (sendo honesta, para minha grande alegria) que Peter ficou me olhando. De maneira bem diferente do normal, não sei, não consigo explica como, mas de repente senti que ele não estava tão apaixonado pela Margot como eu tinha pensado. Durante o dia inteiro, de propósito, não o olhei muito, pois, quando o via, ele também sempre me olhava e então - sim, então senti uma coisa maravilha, que não sinto com frequência.

Segunda de manhã tive que ir ao sótão pegar uns livros para o senhor Pfeffer, então Peter logo aproveitou a oportunidade e também foi lá para cima. Conversamos sobre coisas banais; o senhor Van Pels estava perto e fui relativamente rápido lá para baixo. Quando dei os livros ao Pfeffer, acabei voltando a ler (claro que podia muito bem adiar, mas não fiz isso).

Subi as escadas de novo, com o casaco, e fui sentar numa pilha de sacos no chão, com uma almofada no topo. A janela estava aberta, o sol brilhava maravilhosamente, e eu estava contente, pois sabia que ele iria voltar. Ele realmente veio e me contou o que tinha acontecido na noite anterior.

Tenho uma necessidade horrível de ficar sozinha. Papai comenta que eu não estou normal, mas não digo nada a ele. "Me deixa em paz, me deixa em paz!", era só isso que eu queria gritar. Quem sabe se me deixasse em paz eu ficaria mais doce!

Anne Frank

Versão C
Domingo, 13 de fevereiro de 1944

Cara Kitty,

Muita coisa mudou para mim desde sábado. Por causa disso. Eu ansiava - e ainda anseio - mas... já tive ajuda numa pequena, pequenina, parte.

Domingo de manhã notei - serei honesta -, para minha grande alegria, que Peter ficou me olhando. De maneira bem diferente do normal, não sei, não consigo explica como.

Antes eu achava que Peter estava apaixonado pela Margot, agora, de repente, sinto que não está mais. Durante o dia inteiro, de propósito, não o olhei muito, pois, quando o via, ele sempre me olhava e então - sim, então senti uma coisa maravilha, que não sinto com frequência.

Tenho uma necessidade horrível de ficar sozinha. Papai comenta que eu não estou normal, mas não digo tudo a ele. "Me deixa em paz, me deixa em paz!", era só isso que eu queria gritar. Quem sabe se me deixasse em paz eu ficaria mais doce"

Sua Anne.

Versão D
Segunda-feira, 14 de fevereiro de 1944

Querida Kitty,

Muita coisa mudou para mim desde sábado. O que aconteceu é o seguinte: eu estava sentido falta de algo (e ainda estou), mas... uma parte pequena, muito pequena, do problema seu resolveu.

Na manhã de domingo, percebi, para minha grande alegria (vou ser franca com você), que Peter ficou me olhando o tempo todo. Não de um jeito comum. Não sei, não posso explicar, mas de repente tive a sensação de que ele não está apaixonado por Margot, como eu achava. Durante o dia inteiro, tentei não olhar muito para ele, porque sempre que fazia isso via que ele estava me olhando, e então - bom, isso fez com que eu me sentisse maravilhosa por dentro, e essa não é uma sensação que costume ter.

Na noite de domingo, todo mundo, menos Pim e eu, estava apinhado em volta do rádio, ouvindo o programa "Música Imortal dos Mestres Alemães". Dussel ficava o tempo inteiro virando os controles, o que incomodava Peter e os outros também. Depois de se conter durante meia hora, Peter pediu, meio irritado, que ele parasse de mexer no rádio. Dussel respondeu em seu tom de voz mais arrogante:

- Ich mas das schon!

Peter ficou irritado e fez uma observação insolente. A sra. van Daan ficou do lado dele, e Dussel teve de recuar.

O motivo da discordância não era nada interessante, mas parece que Peter levou a coisa muito a sério, porque, hoje de manhã, quando eu estava remexendo no caixote de livros no sótão, ele veio e começou a contar o que havia acontecido. Eu não sabia de nada, mas logo Peter descobriu que tinha encontrado uma ouvinte atenta, e foi se empolgando.

- Bom, é assim - disse ele. - Geralmente não falo muito, porque já sei que vou ter dificuldade. Começo a gaguejar e a ficar vermelho e confundo as palavras até que preciso parar, porque não encontro as palavras certas. Foi isso que aconteceu ontem. Eu queria dizer uma coisa completamente diferente, mas assim que comecei, misturei tudo. É horrível. Eu tinha um péssimo hábito, e às vezes gostaria de ainda ter: sempre que ficava furioso com uma pessoa, batia nela em vez de discutir. Sei que esse método não leva a nada, e é por isso que admiro você. Você nunca fica sem palavras: diz exatamente o que quer dizer e não se intimida nem um pouco.

- Ah, você está errado - respondi. - A maioria das coisas que digo sai muito diferente do que planejei. Além disso, falo muito e por muito tempo, o que também é ruim.

- Talvez, mas você tem a vantagem de que ninguém consegue ver que você está confusa. Você não fica vermelha nem se atrapalha.

Não pude deixar, no íntimo, de achar engraçado o que ele tinha dito. Mas, como queria que Peter continuasse falando calmamente a seu respeito, prendi o riso, sentei-me numa almofada no chão, abracei os joelhos e olhei-o atentamente.

Fico feliz ao ver que mais alguém nesta casa tem as mesmas fúrias que eu. Peter pareceu aliviado por poder criticar Dussel sem ter medo de que eu desse com a língua nos dentes. Quanto a mim, fiquei satisfeita também, porque tive uma sensação forte de amizade, que só me lembro de ter compartilhado com minhas amigas.

Sua Anne

Nenhum comentário:

Postar um comentário