NOTÍCIA: Da civilidade à civilização

Local: Revista de História
Autor: Valdei Lopes de Araujo
Data: 1/9/2015
Fonte: http://www.revistadehistoria.com.br/

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Da civilidade à civilização

Ideal moderno de educação nasceu com a burguesia e teve que questionar a civilização para incorporar o “outro”

A sociedade de corte do Antigo Regime enfrentou o problema da pluralidade de valores, visível desde o Humanismo, definindo a verdade como algo codificado nos vários níveis de procedimentos retóricos que guiavam o comportamento individual: ser e parecer não deveriam ser dimensões contraditórias.
No que se refere às práticas de sociabilidade, a palavra central era civilidade, que evocava sua origem em civitas, a cidade, em oposição ao rural. Indicava o estado da pessoa que adoçou seus costumes, poliu suas maneiras. Fazia parte de uma intrincada hierarquia de competências: civilidade, polidez e delicadeza, em ordem crescente de sofisticação.
O modelo do homem educado era o frequentador das grandes Cortes absolutistas, que adaptou para suas próprias necessidades os modelos de comportamento presentes em livros como O cortesão, de Castiglione (1528). Conhecer os códigos e os rituais desses espaços cada vez mais complexos era o ideal de civilidade e educação. A Corte exibia-se como um modelo inatingível para uma sociedade organizada em hierarquias naturalizadas. O cortês é urbano e não rural, pertence aos espaços capitais, em oposição aos provincianos, é polido e não rústico, é aristocrático e simbolicamente ligado a um universo de virtude militar – deslocado para os rituais de civilidade.
A intensificação do contado com povos espalhados pelo globo, aberta pelas Grandes Navegações, apresentou também novos desafios para o ideal de civilidade entendido como um "renascimento" de um ideal greco-romano. O Inca Garcilaso de la Vega, filho de mãe americana e pai espanhol, utilizou-se de ferramentas mentais mestiças para apresentar, em seu livro Comentarios Reales de los Incas (1609), a cidade de Cuzco como uma "outra Roma". Uma civilização tão brilhante quanto a romano-europeia, mas que se desenvolveu de modo independente.
O mundo burguês, desenvolvendo-se em paralelo e junto às estruturas do Antigo Regime, impôs a necessidade de construir técnicas de sondagem da verdade enquanto algo interior e subjetivo. Exigia-se um novo e mais amplo conceito de educação. Apenas no século XVIII todo esse universo semântico em torno das noções de civilidade e civilizar convergiu para um conceito abrangente: o substantivo “civilização” não se restringia mais a traços individuais ou de classe, era um estágio do desenvolvimento dos povos. Seu surgimento aponta transformações sociais que tendiam a universalizar a educação como necessidade e direito humano.
A noção de civilização vai se temporalizando. Deixa de se referir especialmente a um modelo clássico, como Roma, para ser interpretada como uma etapa do desenvolvimento das sociedades e, em outra dimensão, dos indivíduos. Ilustrados britânicos como Ferguson, Robertson e Adam Smith elaboram teorias etapistas: a passagem da selvageria à barbárie e desta à civilização era definida pelas atividades econômicas predominantes – caça e pastoreio, agricultura e comércio. Civilização e comércio tornam-se sinônimos, signos de uma sociedade capaz de mediar suas relações e trocas não por meio da violência da guerra, como no mundo antigo e medieval, mas pelo comércio e pela circulação de bens, ideias e pessoas.
Na Revolução Francesa (1789), o termo civilização – ao lado de muitos novos conceitos de movimento, ou seja, que indicavam o progresso da história – é vulgarizado e transformado em ferramenta de aceleração do tempo. A educação, como um dos meios dessa aceleração, deixa de ser assunto doméstico para se tornar objeto de reflexão política e de intervenção do Estado.
O surgimento de amplos setores médios urbanos, estranhos às fidelidades aristocráticas, exigia novas habilidades e um novo ideal de educação e civilização, que em muitos aspectos vai se confrontar com os valores do mundo cortês. Este novo ideal encontra no romance moderno – gênero em acelerada expansão desde meados do XVIII – um de seus mais importantes aliados. Nele, pessoas comuns, expressando-se em uma linguagem próxima àquela do cotidiano, servem de inspiração e guia para uma cultura da sentimentalidade cada vez mais distante do racionalismo neoclássico ou do mundo aristocrático, agora considerado rígido.
Em 1762, Jean-Jacques Rousseau publica o Emílio, híbrido de romance com tratado sobre educação, em que critica a exterioridade e a perversidade do homem dito civilizado. O autor aposta em uma educação pela experiência, que reconheça a dimensão dos sentimentos. Em 1768, outro desses romancistas pioneiros, Lawrence Sterne, publica um relato intitulado Viagem Sentimental, lançando um dos mais influentes modelos dessa nova “educação”, que Sterne definiria como capaz de ensinar a amar o mundo e nossos irmãos melhor do que temos feito, transformando a tradição da grande viagem de formação pela Europa em um exercício sentimental de empatia pela diferença.
A cultura romântica amplia ainda mais o escopo do conceito de civilização, incluindo nele os elementos sentimentais e não racionais que ajudariam a dar individualidade aos povos. Esse movimento ficaria registrado na língua alemã pela oposição entre as palavras Kultur e Civilisation, esta última indicando os aspectos materiais, externos e abstratos do progresso. Surgem conceitos como o de Bildung, que pode ser traduzido como formação, educação, cultura. Ele pressupõe que ser educado é não apenas assumir um conjunto externo e material de conhecimentos ou comportamentos, mas também traduzir a riqueza e a diversidade do real no processo de autorrealização individual e coletivo. Colocando em prática a visão burguesa do indivíduo como singularidade, o ideal romântico da Bildung significava o esforço infinito de incorporar o “outro” na própria formação de si. Em filosofias da história como a de Hegel, esse processo de autoformação será transposto para os povos que, juntos, comporiam o grande romance da história universal.
Uma das armadilhas desse conceito histórico-evolutivo de educação foi sua tendência a se acoplar com teorias de progresso e superioridade. Embora todos os povos pudessem desenvolver sua própria civilização, eles faziam isso em ritmos distintos, cabendo àqueles mais avançados uma missão pedagógica. Em seu romance Coração das Trevas, publicado em 1902, Joseph Conrad traduziu muito dos efeitos que esse conceito de civilização produziu na consciência europeia no auge de sua expansão imperialista. Em um projeto comercial civilizador na África, o protagonista, um híbrido de místico e aventureiro, profere suas célebres palavras: “o horror, o horror”.
Pelas teorias evolucionistas, esse outro não civilizado estava fadado a desaparecer. Mas, longe de ser apenas guardado no grande museu universal, ele ressurgia incessantemente no coração, ou no inconsciente, do homem civilizado. Desde então, o “outro” nunca deixou de ser o grande desafio da educação.
Valdei Lopes de Araújo é professor da Universidade Federal de Ouro Preto e autor de A experiência do Tempo: conceitos e narrativas na formação nacional (Hucitec, 2008).
Saiba Mais
CALDAS, Pedro. “O homem culto do século XIX: questionamentos em torno do conceito de Bildung na obra de J. Droysen”. Revista Terceira Margem, ano VIII, n. 10, p. 135-151, 2004.
MALERBA, Jurandir (org.). Lições de História: o caminho da ciência no longo século XIX. Rio de Janeiro: FGV, 2010.
STAROBINSKI, Jean. As máscaras da civilização. São Paulo: Cia das Letras, 2001.

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