“Porque sou um animal selvagem” é o mote do senhor Raposo, personagem principal de O Fantástico Sr. Raposo (The Fantastic Mr. Fox, dir. Wes Anderson, 2009), adaptação do livro infantil homônimo de Roald Dahl. O patriarca Raposo vive um dilema pois
não aceita deixar-se domesticar e, na ânsia de reviver seu passado glorioso
como ladrão de galinhas, planeja uma aventura com seus amigos que acaba por
envolver não só sua família como toda a comunidade animal, gerando uma espécie de guerra civil com os três grandes fazendeiros locais. O tema dos outsiders é caro à obra de Dahl, pois basta rever alguns de seus títulos (A Fantástica Fábrica de Chocolate, Matilda e James e o Pêssego Gigante, para citar algumas que tiveram adaptações bem-sucedidas para o cinema). Nestas obras há personagens em busca não só de uma forma de expressar seus "eus criativos" no mundo como também a tentativa de se conectar com os outros, uma vez que a expressão da individualidade gera uma espécie de rejeição por parte do mundo exterior.
O que poderia ser
chamado redutoramente de uma crise da meia idade ganha contornos
mais profundos em O Fantástico Senhor Raposo. Isso acontece porque o questionamento do personagem principal toca numa
questão intrigante, perguntando pela essência dos seres e de sua relação não só com
o mundo natural exterior como com sua própria natureza interior. Podem seres
selvagens aceitar ser outra coisa senão selvagens? Até que ponto é possível – e
desejável – mudar nossas naturezas? E qual é o preço desta adaptação? A tensão entre adaptação e mutilação é tópico central no filme e aponta para a complexidade de um mundo onde não podemos ser tudo que desejamos, mas onde necessitamos igualmente respeitar nossas vocações e temperamentos para efeito de manutenção de nossa sanidade mental.
A crítica social é também enfática. Não só no que diz respeito a embates como comunidade versus privado ou natureza versus homem. O
caráter antropomórfico das famílias animais e sua relação direta com a família
nuclear humana de classe média traz ainda mais inquietação acerca da artificialidade da vida contemporânea, onde segurança e conforto são colocados como valores máximos. Como já sabemos, este tipo de ideologia, cujas bases são o medo e o controle, tem regrado a vida individual e social das pessoas por leis de mercado. Um bom exemplo disso é o parque tipo exportação de origem mexicana Kidzania e sua proposta que "oferece às crianças e seus pais um ambiente seguro, único, realista e educacional (...)". O tema é analisado no artigo Kidzania: cidade nada ideal para crianças, cuja divulgação nas redes sociais ganhou o sugestivo título "Kidzania: onde se domesticam as crianças":
Numa tríade que conjuga cidadania, papéis sociais e consumo o resultado só pode ser de domesticação às regras vigentes, regras de mercado que visam (e também adultos). Ao invés de abrir possibilidades, restringe o mundo a um faz de conta onde todas as alternativas são controláveis (e controladas pelas grandes marcas). É impressionante contrapor tal perspectiva com a fala do senhor Raposo:
"No Kidzania as crianças brincam de piloto, jornalista ou engenheiro em trocas sociais e afetivas mediadas pelo consumo e troca monetária. A ideia de ingresso no parque é “pegue seu dinheiro, faça mais dinheiro e gaste como desejar”."
Numa tríade que conjuga cidadania, papéis sociais e consumo o resultado só pode ser de domesticação às regras vigentes, regras de mercado que visam (e também adultos). Ao invés de abrir possibilidades, restringe o mundo a um faz de conta onde todas as alternativas são controláveis (e controladas pelas grandes marcas). É impressionante contrapor tal perspectiva com a fala do senhor Raposo:
"Quando olho para esta mesa, com o excelente banquete colocado diante de nós, vejo: dois incríveis advogados, um hábil pediatra, um maravilhoso chef, um experiente agente imobiliário, um excelente alfaiate, um dotado músico, um ótimo pescador e possivelmente a melhor pintora de paisagens em atividade hoje. (...) Também vejo um cômodo cheio de animais selvagens. Animais selvagens com naturezas puras e talentos puros. Animais selvagens com nomes científicos latinos específicos que significam algo sobre nosso DNA. Animais selvagens cada um com suas respectivas qualidades e defeitos devido à sua espécie."A lógica do senhor Raposo é completamente oposta a do parque temático e para ele mais do que adaptação, a resistência é a chave. E num contexto onde as forças de domesticação e acomodação são enormes, apegar-se ao que é mais autêntico em nós mesmos parece a única saída, a única arma de oposição e mudança. Fazer coabitar nossa existência social sem esquecermos de ser fiel à nossa vida interior mais elementar, vida esta que nos supre de alegria e que norteia a razão de nossa existência, é a grande lição do senhor Raposo.
Numa outra
matriz temos Amantes Eternos (Only Lovers Left Alive, dir. Jim Jarmusch, 2013), onde o
casal de vampiros Adam e Eve protagoniza uma história com ares um tanto apocalípticos ao viverem num mundo onde o sangue dos humanos, assim como o resto, está contaminado. Devido a isto, os vampiros não se alimentam mais diretamente de humanos, recorrendo à alternativas mais "sépticas" para suas necessidades nutricionais. Enfim, para manterem-se vivos, os vampiros se deixaram domesticar e o custo parece ter sido caro, uma vez que Adam se torna cada vez mais recluso e suicida. Adam vive uma crise como o senhor Raposo, e se
não da meia idade, a de uma eternidade que parece finalmente se esgotar,
onde “toda a areia da ampulheta parece estar no fundo ou algo do tipo”. Se o dilema de vampiros que não podem ceder aos seus impulsos predadores já foi celebremente explorado no cinema na figura de Louis em Entrevista com o Vampiro, o tormento romântico é solucionado em Amantes Eternos a partir de uma resposta mais positiva no sentido de aceitação da natureza dos seres. A
chegada da jovem irmã de Eve e seus instintos indomáveis que a levam a
se alimentar de um amigo humano de Adam causam a reviravolta na
história e joga o casal numa série de circunstâncias que os leva ao retorno primitivo da caça.
Os dois filmes denunciam uma nova escala de controle das almas. A tentativa de domesticação pelo medo (seja medo de uma vida que não se cumpra como o planejado ou de um mundo que se despedaça) parece ser o pilar que cada vez sustenta a nossa sociedade. O prazer do processo das experiências é substituído pelo afã dos resultados, o futuro sufocando o presente e até mesmo o passado. Se, por um lado, vivemos uma abertura para a pluralidade da existência e das formas de pensamento, por outro há uma intangível restrição da individualidade e uma ideologia crescente que entende a vida das crianças e adultos como um narrativa linear onde a sequência das coisas já se dá arranjada a princípio. E qualquer ruptura nessa ordem é entendida como uma verdadeira ameaça de morte, como a temível catástrofe da falha. Tal controle acontece em diversas escalas institucionais mas que parecem ter suas amarras mais fortes na família. Não é à toa que a reação inicial da esposa do senhor Raposo à necessidade de ser selvagem é a de assegurar a domesticação do parceiro, negando sua natureza.
"Senhora Raposo: Esta história é muito previsívelApenas posteriormente a senhora Raposo seguirá a revolução contra a domesticação iniciada por sua família, o que parece também ser o caso de Eternos Amantes, no qual Eve apresenta maiores traços iniciais de instinto de sobrevivência. No entanto, no caso de Adam e Eve, seu relacionamento é condizente com sua vida boêmia e a liberdade que lhes é tirada no mundo é devolvida no casamento, seguindo uma lógica mais livre de um amor que não precisa de amarras. Nem a mesma casa eles compartilham, pois Eve vive em Tânger e Adam em Detroit. Quando o amigo de Eve questiona "Francamente, não entendo porque vocês não vivem no mesmo lugar. Porque vocês não podem viver um sem o outro", fica claro que eles não precisam existir no mesmo espaço e viver de acordo com o que é esperado socialmente de um casal para demonstrar seu amor. E em ambas as histórias o retorno ao selvagem acontece a partir do núcleo familiar, o que é bastante sugestivo e aparece sob a forma de um impulso dos personagens rumo à aventuras que demandam coragem e que despertam um sentimento adormecido de estar vivo, de "sobreviver às coisas", como diz Eve. No artigo Jim Jarmusch: 'Women are my leaders' a questão é exemplarmente resumida:
Senhor Raposo: Previsível? Sério? Então como ela acaba?
Senhora Raposo: No fim todos morremos. A não ser que você mude."
"O que Adam aprende, o que Jarmusch entende, é que não é vantagem em se retirar do círculo. A sobrevivência é um instinto e para alguns é a única opção. Os artistas precisam roubar e vampiros precisam se alimentar. O que Adam percebe como entropia, Eve reconhece como fome."
Desta forma, em Amantes Eternos,
viver nas sombras é mais do que a clássica intolerância destas criaturas à
luz solar, é ocultar a essência, é render-se à mediocridade de um mundo
que,
por falta de um impulso original e sincero que o revigore, consome a si mesmo. É
nesse
sentido que Adam declara acerca dos humanos (a quem chama “zumbis”): “Estou cansado disto - desses zumbis, do que eles fizeram com o mundo, seu medo de suas próprias imaginações.”. Em seu tédio de fin-de-siècle, Adam ataca o ponto da questão, uma vez que os humanos "zumbis" (é bom lembrar zumbis agem mecanicamente por serem vazios de alma, por já estarem mortos) são nada mais do que a sociedade que se reproduz de forma egoísticamente predatória, padronizadora e preconceituosa, alheia a valores como sensibilidade e criatividade.
Os vampiros assumem então o arquétipo dos desajustados sociais, dos boêmios, dos intelectuais. Personagens
como Adam e Eve são localizados por toda a história da humanidade, como se
criatividade e originalidade de fato pertencessem a uma zona marginal. Mesmo
artistas e escritores renomados que viveram em meio ao centro do poder tiveram esta característica de uma vida interior rica que os afastava dos
demais, como se as amarras sociais fossem diretamente opostas ao coeficiente criativo.
É claro que o tema da genialidade já foi amplamente debatido e hoje é bastante questionado, mas o que se coloca aqui não é a celebração dos indivíduos ditos geniais como exceção e sim a possibilidade de que todos exerçam sua genialidade, esta entendida como a livre expressão de talentos, sonhos e visões. Amantes Eternos é costurado por narrativas de contato com artistas, escritores e inventores de vários períodos, indivíduos que, como o senhor Raposo, viviam suas vidas sem estarem alheios ao que significa estar neste mundo, que pensaram o que significa este mundo afinal de contas. A grande maioria pertenceu à geração romântica marcada justamente pela celebração dos instintos primários sensoriais e pela afã com que decorava a vida (e encorajava o público a fazê-lo). E foram em grande parte, cada um a seu modo, selvagens, indomesticáveis, incontroláveis, imprevisíveis... e fascinantes. Por isso, que fique a inspiração que estes deixaram e fiquemos com com o ensinamento da senhora Raposo:
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